quarta-feira, 24 de maio de 2023

GERMÂNICOS E ITALIANOS NA COLONIZAÇÃO DE MARECHAL FLORIANO: ITINERÁRIO HISTÓRICO*

 Valmere Klippel Santana**

A história do município de Marechal Floriano, não obstante o fato de a colonização não ter sido unicamente realizada por imigrantes, tendo dela participado muitos nacionais,    está sobremaneira ligada ao processo imigratório do século XIX e, portanto, contextualizada na história da Europa, continente originário tanto de germânicos, quanto de italianos.


Nesse contexto, pesa sobretudo os desdobramentos e contradições do Congresso de Viena (1815), pacto celebrado entre os diversos povos europeus, após a derrota de Napoleão Bonaparte, para estabelecer as fronteiras de seus territórios, compostos por ducados, reinos e impérios.



Figura 1 Mapa da Europa após o Congresso de Viena (1815). No detalhe, a Confederação Germânica.



Essa divisão estabelecida pelo Congresso de Viena, apesar de redesenhar a Europa, não garantiu a paz no continente. O Reino da Prússia era um dos mais descontentes, principalmente por disputar com o Império da Áustria a hegemonia do bloco dentro da Confederação Germânica. E na esteira desse descontentamento é que surgiu o desejo de unificação do povo alemão em um estado-nação.


Os efeitos guerras desse processo, que coincidiram com um cenário político brasileiro no qual se vislumbrava o fim da escravidão e a necessidade de inserção da mão-de-obra livre na matriz produtiva nacional – mas também da ideologia do “branqueamento” da população -, fez com que uma rota imigratória de germânicos entre a Europa e o Brasil se estabelecesse.


A Rota Jucu


No Espírito Santo, que já havia testado sem muito sucesso a importação de mão de obra com os açoriano de Viana, em 1812, a importação dos germânicos para ocupar o “vazio territorial” das terras montanhosas – nas colônias de Santa Leopoldina e Santa Isabel - apresentou-se como uma alternativa atraente, porque, adicionalmente, esses imigrantes (notadamente camponeses germânicos) poderiam ajudar a suprir a demanda crescente por gêneros agrícolas na província.


Figura 1 - Marco da colonização germânica, fixado na Serra da Boa Vista, em Domingos Martins

Assim, após fundar a Colônia de Santa Isabel, o Presidente da Província (assim se denominava estad
o à época), Luiz Pedreira do Couto Ferraz, solicitou ao Imperador o envio de famílias de imigrantes germânicos para colonizar o lugar.


Atendido em seu pedido, o Presidente da Província viu chegar a Vitória, a bordo do navio Éolo, em 21 de dezembro de 1846, a primeira leva de imigrantes germânicos, composta por 29 famílias prussianas, que foram encaminhadas para a nova colônia em 27 de janeiro de 1847, naquela que ficou conhecida como Rota Jucu. Mas esse foi só o início do processo de colonização na Colônia de Santa Isabel, como veremos adiante.


A Vila Nacional do Braço do Sul


Depois da instalação das primeiras famílias de imigrantes, no núcleo original de Santa Isabel, que é o local no qual situa-se o marco da colonização (fig.01), na entrada para Biriricas (margem direita, sentido Vitória-Minas), a colônia cresceu e logo os imigrantes moveram-se na direção de onde atualmente está Santa Isabel e, posteriormente, Campinho (Domingos Martins). E, seguindo esse ritmo de crescimento, consta que com sua nomeação pela Coroa, Adalberto Jahn contratou, em 1858, o agrimensor Hermann Steinkopf, para inventariar as terras na direção sudoeste, às margens do rio Braço do Sul, a fim de para elas encaminhar novas famílias (descendentes dos primeiros imigrantes e nacionais). Steinkopf, em seu trabalho, parece ter gostado tanto dos aspectos geográficos das novas terras das quais fazia o reconhecimento, que chegou a adquirir nelas um lote, sendo, ao que parece, seu papel também importante no convencimento de Jahn sobre ser o novo lugar o mais apropriado para realizar a necessária ampliação da colônia.

Nessas novas terras inventariadas inicialmente por Steinkopf, no ano de 1860 o Ministro da Agricultura, Manoel Felizardo de Souza e Mello, atendendo a solicitações de Jahn, mandou que o engenheiro Pedro Cláudio Soído demarcasse 100 novos prazos, projetando uma ponte sobre o Rio Braço do Sul, que começou a ser construída em 1861. Mas há evidências de que, desde as primeiras medições de Steinkopf, algumas famílias começaram a se instalar na vila, tanto que o primeiro nascimento registrado nela,  o de Gustav Fischer,  foi registrado em de 11 de março de 1961, conforme consta no livro da Igreja Luterana de Campinho, acontecendo mais de um ano antes da sua inauguração oficial. 

Todavia, a ocupação da vila começa a intensificar-se apenas no ano de 1862, quando o Diretor da Colônia de Santa Isabel recebe mais uma leva de famílias imigrantes, enviando 99 pessoas, incluindo entre estas 10 famílias nacionais, para a região do Braço do Sul, na qual já se construía uma ponte e um barracão para recebê-las. Esse local, que fica na margem esquerda do rio (sentido Vitória-Minas), onde atualmente está a Macefel, foi nomeado, através do relatório de 22 de outubro de 1862, do Ministro e Secretário da Província de Negócios da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, Coronel Engenheiro Pedro de Alcântara Bellegarde, Vila Nacional do Braço do Sul.

Nesta vila instalaram-se, a partir de 1862, os peregrinos do A. Borsing, as primeiras gerações de famílias hoje tradicionais na região, como é o caso dos Kuster (lote 253 A e B, de Johann Kuster,  correspondia ao trecho em que se situa a parte central da cidade até a subida para Bom Jesus); dos Schneider ( lote 567, Heinrich Schneider, onde hoje está o Bairro N.S. da Penha até próximo ao Show House); Rupf ( lote 251, de Herman Rupf, de onde fica Santa Rita até o Apollo); e Wassem (Vale das Palmas, de Jacob Wassem), entre outras famílias.


Figura 2 - O casal Emil Rupf (26/06/1866) e Johann e Therese Kuster (08/05/1863) estão entre os primeiros brasileiros nascidos na Vila do Braço do Sul. Na foto, Emil e Johanne (à frente) com sua prole.


O lado direito do Rio Braço do Sul foi ocupado um pouco mais tarde, passando a ser mesmo povoado a partir da segunda década do século XX, quando Emílio Entringer comprou um lote e fez construir nele algumas casas. Contudo, foi nesse lado que Pedro Claudio Soído mediu a maior parte dos lotes durante seu trabalho, dando origem àquilo que hoje são as localidades de Morada Ponto Alto, Soído de Baixo e Nova Almeida, por exemplo. Mas, é bom que se considere, também, que desse trabalho do engenheiro Soído (e daquele posterior a ele como continuidade) deriva o nascimento de Rio Fundo e Santa Maria de Marechal. Tanto isso é fato que o trabalho dos agrimensores constitui-se em algo permanente, como comprova uma solicitação de Jacob Kiefer, em dezembro de 1881 à Comissão de Medição, requerendo um lote na localidade de Rio Fundo.

 A Rota Benevente

Já a história de Araguaya e Victor Hugo deriva de um outro movimento migratório, aquele ligado à rota Benevente e ao Núcleo Colonial Castello, sob a gestão do engenheiro Joaquim Adolpho Pinto Pacca, ocorrida mais tarde, a partir dos anos 1880, decorrente de um processo histórico diverso, que foi a Unificação Italiana.


Fig. 03 - Fronteiras da Península Itálica definidas pelo Congresso de Viena

Esse processo de unificação italiana, decorrente de reação de nacionalistas à decisão do Congresso de Viena (1815) que retalhou o território da Península Itálica em diversos reinos (Reino Sardo-Piemontês, Reino Lombardo-Veneziano, Ducados de Parma, Módela e Toscana, Estados Pontifícios e Reino das Duas Scicílias), concluiu-se apenas em 1871, depois de várias guerras, apesar de completar-se apenas no ano de 1919, com a recuperação dos territórios do Trentino (ao norte) e da Ístria (a nordeste) antes sob o domínio do Império Austríaco.


Fig. 04 - Itália Unificada

Todas essa guerras, assim como uma conturbada inserção dos territórios na lógica capitalista que começava a hegemonizar no mundo, entretanto, serviram para degenerar sobremaneira as condições de vida no território da Itália unificada. A violência dos conflitos, mas também o atraso econômico e a periferização diante do processo de industrialização dos vizinhos (e a fome desses processos decorrente), fizeram surgir na população um desejo pela busca de uma vida melhor em outros lugares. Aliando-se isso ao contexto de um Brasil que desejava trocar a mão de obra escrava por trabalhadores assalariados (a abolição viria somente em 1888, mas a entrada do trabalho livre para "branquear" a população começou bem antes), aquele sonho de uma vida melhor dos italianos encontrou facilmente uma alternativa no outro lado do Atlântico. 

E foi buscando esse "sonho da  América" que os italianos começaram a chegar ao Espírito Santo. Assim, após a célebre Expedição Tabacchi (1874), que trouxe ao Brasil, a bordo do veleiro Sofia, 388 camponeses trentinos e vênetos, direcionados às terras de Pietro Tabacchi, no núcleo Timbuhy (Santa Teresa), inaugurando o movimento migratório em massa dos italianos, novas levas desses imigrantes começaram a chegar.

Todavia, as raízes da colonização italiana no município de Marechal Floriano estão fincadas não nessa primeira onda migratória, mas nas subsequentes, com o protagonismo de um novo destino: A Colônia do Rio Novo (1854-1880). Assim, com o objetivo de fornecer braços à lavoura cafeeira do sul do estado, os imigrantes italianos chegavam não com o objetivo de preencher o "vazio territorial", como ocorrera com os germânicos em Santa Isabel. As condições insatisfatórias que encontraram e sua postura contestadora, que ocasionou várias revoltas, é que forçou o Governo Provincial e o Império a organizar também o assentamento de parte desses novos imigrantes em lotes coloniais.  

Mas foi a partir de 1880, com a transformação de Rio Novo em município, a criação do Núcleo Colonial Castello e a nomeação do engenheiro Joaquim Adolfho Pinto Pacca para dirigir esse novo núcleo, que a colonização italiana no estado também ganha contornos de um movimento de povoamento, com a medição de lotes e a instalação neles das famílias de imigrantes. 


Fig. 5 Busto de Joaquim Adolfo Pinto Pacca, inaugurada em
08 de fevereiro de 2023 no distrito de Araguaya


Trabalhando com a divisão do território que administrava em "seções", as quais nomeava com nomes das filhas ou de pessoas por quem tinha afeição (Iracema, Carolina, Alexandrina, Victor Hugo), Pinto Pacca coordenou um verdadeiro movimento de "entrada", uma penetração nas selvas que acabou por servir como impulso fundante de diversas localidades, entre as quais situam-se Araguaya e Victor Hugo, hoje distritos de Marechal Floriano.

Fig. 6 - Lotes demarcados por determinação de Pinto Pacca na Seção Araguay (1884)

Como é possível perceber, após receber a incumbência de Administrar o Núcleo Colonial Castello, Pinto Pacca coordena um trabalho diligente de reconhecimento e delimitação de lotes para ocupação. Entre uma coisa e outra, obviamente passa-se algum tempo, de modo que data de 1888 apenas a chegada das famílias de Pietro Borgo e Giacomo Gagno à Seção Alexandrina. No ano seguinte, 1889, as famílias Cosmo e Moretti chegam à Seção Victor Hugo. Estava fincada em solo florianense as bases para a colonização italiana.

O reencontro de povos europeus na América

Mesmo advindos de rotas muito diversas, e mesmo com objetivos iniciais contrastantes (os germânicos já chegaram destinados ao povoamento e os italianos chegaram como mão de obra para as lavouras de café), esses povos europeus se encontraram nas montanhas capixabas na fundação do hoje município de Marechal Floriano. E na sinergia dessas culturas, ne sua força de trabalho e criatividade, no contato com a natureza pujante e a terra fértil, nasceu Marechal Floriano, que com a Estrada de Ferro Sul do Espírito Santo, após a primeira década do século XX, quando ficou pronto o trecho que corta o território, alcançou integração eficiente.

Fig. 7 - Cartaz da XXI edição da festa da colonização
ítalo-germânica de Marechal Floriano

Essa simbiose das culturas tão diversas que construiram a cultura Florianense é anualmente comemorada com a realização do festival ítalo-germânico, no qual a cidade se reúne para receber visitantes e reverenciar sua história e sua cultura. Normalmente a festa transcorre em todo um final de semana e, além de produzir renda, promove a vivência cultural da cidade, envolvendo os florianenses e os turistas em uma atmosfera de confraternização e de ação de graças por tudo aquilo que foi historicamente construído e conquistado.

A partir de 2023 também acontece a Semana de Promoção da Memória Histórica e Cultural, com uma programação toda voltada para eventos culturais, como Festa literária Serestas de rua, Festival de sabores, mostra de Cinema e Vídeo, palestras, rodas de conversa, apresentações musicais e lançamentos de livros, entre outra atividades. A "Semana" é produto de parceria público-privada, envolvendo, além dos entes públicos, que a instituíram através da Lei Municipal nº 2.523, de 18 de novembro de 2022, o setor produtivo e o terceiro setor, que a realizar através da AFHAL - Academia Florianense de História, Artes e Letras "Flores Passinato Kuster", fundada em 2021 para promover a cultura municipal.

Fig. 8 - Cartaz da I Semana..., em 2023.


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Referências

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HOBSBAWM, Eric J. A Era dos Impérios:1875-1914. Trad. de Sieni Maria Campos e Yolanda Steidel de Toledo. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1988.

_______. A Era do Capital:1848-1875.  2 ed. Trad. Luciano Costa Neto. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1979.

SANTOS, Ezequiel Sampaio dos et allii. História, Geografia e Organização Social e política do Município de Domingos Martins. Colaboração de Joel Guilherme Velten e Roberto Anselmo Kautsky. Vitória: Brasília Editora, 1992.

PUPPIN, Douglas. Os De Nadai - Pietro:Benemérito da libertação de Roma. Vitória: IHGES, 2000 (Cadernos de História nº 39).

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URBAN, Max. Santa Isabel - A primeira comunidade evangélica alemã no estado do Espírito Santo, Brasil. Trad. e notas explicativas de Valdemar Gaede. Vitória: IHGES, 2014. Cadernos de História (v. 57).

ZETTIRY, Arrigo de. Viagem às colônias italianas do Espírito Santo - Onde estão e como vivem os camponeses italianos no Espírito Santo - 1902. Trad. de Nerina Bortoluzzi Herzog e prefácio de Renzo M. Grasseli. Vitória: APEES, 2021. Coleção Canaã (v. 28).

*Nossos agradecimentos aos pesquisadores da memória de Marechal Floriano, Cezar Tadeu Ronchi Junior, Jair Littig e Giovana Schneider, pela valiosas horas de conversas e pelas fontes primárias para composição do presente trabalho.

** Historiador e escritor, Licenciado em Ciências Humanas e Sociais pela UFES, é titular da cadeira Arnaldo João Kuster, nº 11, na AFHAL - Academia Florianense de História, Artes e Letras "Flores Passinato Kuster".







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